Um artista se autodescobrindo: a arte de Gustavo, Garoto, ou… o “Leonel”

(entrevista para ser lida ao som de “Persona”, vídeoEP lançado nesta quarta-feira nos canais de distribuição de Leonel.Música)

É difícil começar um texto sem saber ao certo como chamá-lo, mas pelo menos há uma certeza. Vamos falar de um artista genuíno. Se é Gu, Garoto, Borges ou Leonel, não interessa muito. A essência e o âmago estão intactos, independentemente da maneira como ele escolher ser atendido.
“Leonel” é o nome do mais recente projeto de Gustavo Borges Kraemer, 24 anos, que vem constantemente se autodescobrindo como um músico. Nessa jornada, um passo maior o levou até São Paulo, onde começou a estudar piano no Conservatório de Música de Tatuí. Gustavo dedicou um tempo para responder algumas perguntas e mostrar um pouco mais da essência de um “garoto” que, entre muitos “eus”, encontra-se no começo de uma bonita caminhada.

Qual é a lembrança mais remota do teu primeiro contato com a música?

Gustavo Borges Kraemer – Não tenho certeza se é uma lembrança real ou forjada, mas creio que tenha sido ouvir meu avô tocando gaita e fazendo familiares e amigos rirem com as suas piadas. Algum tempo depois, uma lembrança marcante foi ouvir ele tocando Fascinação no piano, já cego pela diabetes.

Tu colecionas projetos que envolvem música… Podes falar um pouquinho sobre eles e o que cada um representa pra ti?

Gustavo – São algumas facetas, cada um com a sua linguagem… a Dandis  foi minha primeira incursão como compositor, aos 17 anos. Talvez a que tenha obtido maior alcance por ter uma estética pop, canções com refrões bem demarcados, explorando a imensa musicalidade do Vini (Vinícius Kunzler), com quem aprendi muito sobre arranjo e profissionalismo no meio musical. A Guantánamo Groove foi um movimento de libertação musical… O OCUPA é um grande experimento, mesclando rock, funk, jazz, reggae, rap, lisergia e, por fim, uma Orquestra de Câmara. Nem eu nem Yuri somos cantores de ofício, e aprendemos a tocar baixo e guitarra com o desenvolver da banda… Tinha tudo para soar caótico, mas há uma energia que percorre o som da banda… A bateria pulsante do Vagner dá a cola, fazendo o motor funcionar e deixa tudo com muita química. Creio que o BOCA (2014) foi fundamental para que encontrássemos uma linguagem que tivesse grande identificação com a nossa cidade.

Concertos para o Conserto. Foto: Vic Martins

Tocar com Pirisca Grecco nos “Concertos para o Conserto”, na sala de casa e no palco do Treze de Maio, foi uma celebração em todos os momentos. Foi um aprendizado ver que mesmo uma dificuldade pode ser contornada com alegria e criatividade, como foi o caso da restauração do nosso piano. Tive muita sorte de estar perto desse artista gigante, que passei a admirar ainda mais como amigo. Para além disso, é por causa do gesto dele que estou aqui, em outro estado, estudando esse instrumento. Ter um piano emprestado na sala de casa foi uma oportunidade rara e, ainda bem, muito bem aproveitada. Outro trabalho que está sendo desenvolvido em conjunto com o cantor Lutiano Nascimento, ex-integrante da Pegada Torta e que está estudando e morando comigo aqui em Tatuí, é a COISA. Temos um videoEP que vai sair na metade do mês e muitas músicas próprias para apresentar. Tô colocando muitas fichas nesse projeto pois acredito na potência e na verdade do Luti.

O piano me parece ser o instrumento no qual depositas mais fôlego. É isso mesmo?

Gustavo – Bem, é isso mesmo. Tenho uma vivência com o violão e com a guitarra, mas o piano é de longe o instrumento que mais me emociona e onde projeto meus futuros trabalhos. A conexão se iniciou com um episódio com meu avô. Ele já andava há alguns anos acamado, mal de saúde. Em uma noite de Natal, enquanto fazia uma visita à casa da família, o percebi bem fraco fisicamente. Passei então a madrugada inteira tirando uma música chamada Body and Soul, catando nota por nota mesmo nos dedos duros, pois não era familiarizado com o instrumento. Na manhã seguinte, toquei para ele e tivemos um momento muito diferente, pois, mais do que avô e neto, compartilhamos uma espécie de reconhecimento entre músicos, uma admiração que acontece quando você ouve alguém tocando algo que te emociona profundamente. Ao menos eu senti dessa forma: senti que ele me percebeu de um jeito diferente, e me agradeceu muito, emocionado. Minha mãe já me chamava para irmos embora quando toquei a outra única canção que sabia, Epitáfio, dos Titãs. Depois nos despedimos e saí… Acabou sendo a última vez que nos falamos em vida. Ainda hoje agradeço demais por esse momento ter acontecido.

Foto: Reprodução / YouTube

Tu saíste de Santa Maria para estudar piano em uma escola renomada. Como foi?

Gustavo – Foi algo que aconteceu no melhor momento possível. Passei os últimos anos estudando Direito na UFSM, mas sabendo que aquilo não era pra mim, no sentido de que não me via sendo um burocrata, embora respeite e admire quem lida com o Direito de forma a tentar equilibrar a balança do poder. Me formei no mesmo dia em que recebi a notícia que havia passado na seleção para pianista de Música Popular Brasileira e Jazz. No primeiro dia aqui, já fui exposto a muita informação: uma masterclass com o pianista da Orquestra Jazz Sinfônica de São Paulo e um concerto em homenagem a Tom Jobim. Acho que nunca fui tão feliz de estudar algo na vida.

Com essa mudança, como fica a Guantánamo? Aliás, o que a GG representa para tua construção como músico?

Gustavo – A Guantánamo é uma vivência muito importante pra mim, pois transcende a relação “colega de banda”: moramos juntos por 4 anos em uma casa que se tornou um espaço cultural e laboratório criativo, trabalhamos e investimos um bocado de tempo no projeto, arquitetamos muitas coisas e creio que esse período ajudou a moldar a forma como encaro a música. Estamos bem ativos, mesmo com a minha mudança: temos agenda de shows em abril e maio no Sul, além de entrar em estúdio para gravar um novo single para ser lançado este ano. A ideia é continuar a fortalecer o projeto… acho que todas as bandas que investem em música autoral esbarram na limitação financeira para concretizar suas ideias, mas procuramos encarar isso e, diante de dificuldades, elaborar novas soluções.

Foto: Rodrigo Ricordi

Gostaria que falasse sobre o novo projeto, que envolveu até a criação do pseudônimo – o Leonel. O que significa pra ti este novo momento?

Gustavo – O projeto é um canal de distribuição de conteúdo denominado LEONEL.MÚSICA, que se estabelece por meio de conteúdos no Instagram, Youtube, Facebook e em redes como o Spotify. A proposta é trazer ao mundo co-criações artísticas através de diálogos entre música, fotografia, desenho, poesia, estabelecendo uma linha de narrativa para a estrutura que chamei de Capítulo. Cada capítulo tem seu universo semântico em diálogo com seus antecessores e sucessores. A escolha dos artistas foi por pura admiração ao trabalho de cada um deles, todos residentes em Santa Maria, e as referências são estabelecidas em diálogo com cada fotógrafo ou ilustrador. 
Penso que a lógica é trabalhar com alguns pontos: 1) Usar a singularidade da arte como antídoto a uma lógica efêmera de produção e dispersão de conteúdo no Instagram. Explico: ter dez artes inéditas do artista Braziliano ilustrando um conjunto de músicas é, ao menos pra mim, algo significativo ao ponto de fazer o ouvinte descer a barra de rolamento e procurar conteúdos que, em outra circunstância, seriam descartáveis. 2) Coletivizar e diversificar a produção: a potência criadora em conjunto não apenas soma, multiplica.

Arte do ilustrador e artista de rua Braziliano para o EP “Persona”

3) Fugir de uma concepção de “persona pública = vida privada”. Uma grande dificuldade na minha vida é aceitar o fato de que minha profissão consiste em buscar a atenção das pessoas para “vender” muitas vezes aquilo que tenho de mais íntimo da minha psique, de forma que eu consiga encontrar meios de viabilizar grana o suficiente para ser autossustentável enquanto compositor. A forma como os artistas trabalham isso é expondo fragmentos de seu dia a dia e retratando o cotidiano em busca da aproximação dos “seguidores”. Tentei, mas fui péssimo nisso. Não era espontâneo pra mim. Esse projeto é, pelo menos em tese, uma alternativa a esse método. Mas sinto ainda que o público QUER a intimidade do artista. Nesse sentido, vejo esse formato com um certo distanciamento por opção, como não-atrativo para parte do público, imagino. A ideia de criar o canal foi com o objetivo de escoar músicas que, por alguma razão, não se adequavam ao repertório das bandas que participo, como uma limpeza na gaveta de rascunhos dos últimos anos.

Quanto sentiu que era o momento de criar esse novo projeto?

Gustavo – Senti que era o momento quando vi que estava deixando coisas demais para trás…Hoje tornou-se maior que isso, um escopo para trabalhos que realizo e realizarei em parceria com outros artistas. Acho também que ainda não consigo me colocar confortável com a ideia de assumir carreira solo de fato, pois em meu íntimo tenho dúvidas se estou preparado enquanto intérprete e musicista, mas um desconforto maior seria deixar morrer várias canções que gosto e ficariam esquecidas, sem registro. A experimentação faz parte de qualquer processo artístico, então tentei adotar novos formatos usando as ferramentas virtuais que temos à disposição.

O que significa, genuinamente, a música pra ti?

 Alimento, combustível, propulsão, remédio e propósito.

Quem é o Gustavo ? Como ele se construiu e como se enxerga hoje?

Olga Lab

Gustavo – Eu não faço a mínima ideia, tô nessa busca, mas parece que quanto mais vivo, mais acho que certezas são perigosas. Eu nasci em uma cidade que não conheço, Dourados/MS, me mudei para Maringá/PR ainda bebê, depois Não-me-Toque (RS) Santa Rosa, Santa Maria, agora Tatuí/SP e provavelmente algumas outras virão. “Borges”, “Paraná”, “Garoto”, “Gu”, já tive tantos apelidos e atendia por eles por comodidade… mas de fato sentia que “Gustavo Garoto”, por exemplo, sempre foi o nome de outra pessoa, sei lá. É bem louco. A psicologia tem um conceito interessante, que remete ao teatro Grego, que é o de “Persona”. Lici Brun é teu nome nas redes sociais, mas eu imagino que, embora seja uma pessoa só, você adota uma linguagem/postura frente ao seu chefe no trabalho, uma linguagem/postura dentro do teu relacionamento, outra frente aos teus pais, outra com teus amigos de infância, outra frente a um desconhecido… não tem nada errado nisso, mas são as múltiplas facetas comportamentais que te constituem como uma no somatório. As redes sociais são apenas uma persona tua, um fragmento: dentre todos os teus pensamentos, você escolhe alguns para compartilhar, algo para te constituir publicamente enquanto indivíduo…Nos últimos anos, tenho me aproximado de leituras de psicologia e filosofia e essas perguntas que você fez têm tomado bastante meu pensamento. Não saberia te dar uma resposta satisfatória, e se desse alguma, ela provavelmente mudaria em algum tempo. Talvez o propósito de vivência esteja nesse processo permanente de autodescobrimento… Enquanto músico, me construí na base de muita dedicação ao meu instrumento, como uma sede insaciável de tocar e tocar e compor. Hoje, me considero no “iniciozinho” de uma longa caminhada. Assim espero…

((Veja e ouça aqui todas as canções publicadas no canal  Leonel.Música))

[ABTM id=2027]

 

Inscreva-se

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *