Do alto dos seus 1,80 metros, a regente da orquestra faz a batuta dançar entre seus dedos. Conduzindo um conjunto de talentosas crianças e adolescentes, Elen Janine Ortiz, 28 anos, é uma criatura realizada “aprendendo a ser gente”. Não só pelos imponentes quase dois metros de altura, incluindo a cabeleira, mas também pela presença e propriedade com que a maestrina comanda seus pequenos: não tem como passar despercebida aos olhos de quem enxerga uma apresentação.
Elen nasceu em Jaguari, mas aos 13 anos veio para Santa Maria. Por alguns períodos chegou sair da cidade, mas sempre voltou. Comandando a orquestra e dando aulas de flauta na Associação Orquestrando Arte, Elen criou uma conexão ímpar com a arte, instrumento que também usa para se opor aos preconceitos que invariavelmente ainda existem na condição de mulher negra. Em uma conversa boa, entre riso e lágrima, Elen contou sobre seu envolvimento com a arte e as bandeiras que levanta no dia a dia. Leia abaixo 🙂
Como nasceu o seu amor pela música?
Elen Ortiz – Desde criança sou envolvida com a música. Minhas poucas lembranças da infância remetem à música. Cresci cantando no coral da igreja, e só não cantava no coral masculino porque não me deixaram. Fui crescendo e meu irmão mais velho queria aprender música e perguntou se eu queria aprender. Fui na onda e minha mãe me colocou no piano e meu irmão no violão. Foi ali que ele aprendeu a despertar para música. Mas eu não queria nada com nada, fiquei três meses e não aprendi nada. Fui pro violão, e também não rolou. Minha mãe então sugeriu o contrabaixo. Fui e não progredi de novo. Mas sempre gostei muito de cantar, sempre cantava.
E quando foi que você se inseriu na música aqui em Santa Maria?
Elen – Quando vim para Santa Maria tinha 13 anos, e fui estudar no Colégio Militar. Lá eles têm a questão de formação de bandas marciais muito forte. Eu estava ali mas não estava tão interessada. No fim de 2003, eu estava ouvindo umas canções da igreja e ouvi um som diferente, que me chamou a atenção. Fui buscar o professor da banda do colégio pra descobrir qual era aquele instrumento, porque aquele eu tinha gostado. E ele disse: “olha que interessante, é uma flauta. E por incrível que pareça, nós temos uma flauta e não temos um flautista”. E aí eu me empenhei a estudar. Estudei flauta doce e transversal. Me aproximei do instrumento aí, mas de cantar, nunca parei.
O seu envolvimento com a Associação Orquestrando Arte existe desde o início. Como tudo aconteceu?
Elen – A questão social sempre esteve presente em mim. No início de 2012 eu iria para o Paraguai, para uma escola que me prepararia para a África. Deu tudo errado. Era o primeiro ano que aquela escola não recebia turma. E aí me questionava, por que as coisas deram errado? No meio do caminho, aqui em Santa Maria, a associação da igreja onde eu participava tinha um projeto social com crianças e adolescentes, no Alto da Boa Vista. Não tinha música, mas a ideia era desenvolver ao longo tempo. Me voluntariei e conheci a assistente social – Mírian de Agostini Machado – com quem eu trabalho hoje. Fui me apegando. Em 2013, o professor Marco Antônio Penna, da UFSM, estava formando uma orquestra com crianças em situação de vulnerabilidade no Pão dos Pobres, e como eu já tinha sido sua aluna, entrei em contato com ele. Comentei que queríamos ter uma orquestra e ele topou. Com três meses do trabalho, fizemos campanha para arrecadar instrumentos. Ele tinha o programa Orchestrarium e as coisas cresceram. O grupo dele se juntou ao nosso. Depois de um ano, por questões legais, foi fundada a associação Orquestrando Arte. Nós não tínhamos quase nada, foi uma loucura no início. Por seis meses trabalhamos manhã, tarde e noite. Hoje ficamos nostálgicos em ver o quanto crescemos. Quando começamos tinha uma cadeira e um computador da assistente social. Fizemos campanha de boca a boca, e as pessoas nos ajudavam. Um dava um instrumento, outro dava 50 reais, outro o valor do instrumento… Hoje temos quase a quantidade de um instrumento por aluno e atendemos, em toda a associação (incluindo oficinas de teatro, dança, artes manuais e visuais e canto) cerca de 150 alunos.
Quais são as suas funções dentro da associação?
Elen – Sou coordenadora de coro e orquestra. Sabe quando tu és quase a dinda da criança? Me sinto assim muitas vezes. Conheço o dia a dia dos alunos, e querendo ou não, nos envolvemos e criamos bastante vinculo. Eu e os outros professores somos o meio, a ferramenta, de comunicação, entre a instituição e o que o aluno precisa. Nossas funções são múltiplas, muitas vezes somos o psicólogo, o pai, a mãe e professor, mas enquanto professores somos os braços da instituição.
E qual foi o maior aprendizado que já recebeu com esse trabalho?
Elen – Eu aprendi a ser gente. Porque eu acho que eu não era. Eu não abraçava as pessoas, não dizia às pessoas o quanto gostava delas. Nada disso. E tudo isso é algo que eu aprendo todos os dias. Teve um dia que, depois de uma apresentação da orquestra, sentamos para conversar. Era um grupo pequeno, seis ou sete alunos. E começamos a falar o que cada um tinha de bom e o que precisava melhorar. E meus alunos me disseram coisas absurdas. Era difícil de eu acreditar naquilo que eles diziam. Que eu era muito grossa, eu era muito estúpida… e aquilo me doeu a semana inteira. Eu saí de la e chorei. Eu disse que não queria mais ser daquele jeito. Então, hoje eu me vejo gente. De saber que as pessoas nem sempre agem de uma forma porque elas querem. Muitas vezes elas só agem assim porque ninguém disse que elas podem ser diferentes. São crianças que não têm comida em casa, ou que estão preocupadas porque o pai ou a mãe está preso, ou porque os pais estão se ameaçando de morte. Sabemos que são coisas que realmente acontecem. Boa parte dos nossos alunos têm uma vivência que eu e você provavelmente nunca vamos ter, de saber o que é a violência de fato, escrachada. Eu aprendi a ser gente, e ainda estou virando gente. E estou ali como uma forma de mostrar também o outro lado. Mostrar que podemos ser diferentes e escolher a nossa vida. Não interessa o que tu passou na tua infância, ou o que teus pais são. A primeira coisa é tu querer. Mas é difícil, na maioria das vezes, romper uma tradição, um sistema ou simplesmente romper com a tua zona de conforto.
Você também tem envolvimento com a Juventude Negra Feminina. Pode falar um pouco?
Elen – O grupo não tem mais se reunido tanto fisicamente. Me aproximei do movimento negro da cidade em 2012 por perceber a importância que é ter representatividade. Se tudo é mais difícil para a mulher, para a mulher negra é muito pior. O movimento feminista em geral traz que no início a mulher lutava pelo direito de trabalhar. Mas as mulheres negras não tinham direito a essa escolha. Elas trabalhavam desde sempre. Elas só queriam amamentar seus filhos, mas elas eram retiradas pra alimentar os filhos das suas senhoras. Tudo isso é forte e muito presente para mim, sabe? Da minha família, sou a primeira a ter uma formação superior – me graduei em Enfermagem. Acredito que nós, enquanto mulheres negras, precisamos mostrar para as meninas e para mulheres de outras idades que podemos construir uma história diferente da mulher negra do nosso país. Já sofri muito preconceito. O fato de ser cotidianamente enxergada como objeto de satisfação e de desejo, ou então de uma estética não desejada… De sair na rua com meu cabelo e um sujeito passar e gritar: “vai arrumar esse cabelo, raspa o cabelo”. Isso são coisas que machucam, mas se a gente não enfrentar, nunca vai parar. Cresci ouvindo minha mãe dizendo para não passar nada químico no cabelo. Ela me trançava… Sempre tive orgulho de ser negra. Mas até a minha a adolescência era muito alienada. Isso eu também devo à cidade, porque foi aqui que acabei me descobrindo como cidadã negra. Eu tinha 18 anos quando comecei a soltar meu cabelo na rua, deixar ele com todo o volume que podia. Foi um processo difícil. Fiquei uma semana dentro de casa, soltava o cabelo, me olhava no espelho, mas eu tinha medo da reação das pessoas na rua. Meu irmão diz que a melhor coisa que aconteceu na minha vida foi eu ter descoberto meu cabelo. Um processo de liberdade, de ser quem realmente quem tu queres ser, sem se preocupar com o que os outros vão pensar. Meus pais sempre me ensinaram que em situação de ofensa não devemos baixar a cabeça. Eu sempre tive isso forte. Tenho quase 1 metro e 80, com meu cabelo fico com quase dois metros. São poucas as pessoas que ainda têm coragem de querer me ofender.
Teu cabelo é lindo. É um poder, né?
Elen – É, um poder! (risos). Eu gosto muito do meu cabelo, e às vezes mudo. Quero trançar, já descolori, mas não são coisas que tenho hábito de fazer. Ele faz parte de mim, faz parte de quem eu sou. A única coisa que, se pudesse mudar em mim, eu seria mais escura, mais pretinha. Acho que seria mais divertido!
De que formas você luta contra o preconceito hoje?
Elen – Eu uso a arte. A regência é um espaço dominado majoritariamente por homens, e homens brancos. Eu vejo esse lugar dentro do mundo erudito um espaço de resistência e representatividade. Uso minha roupa, pra dizer que tenho meu gosto e minha personalidade. Meu cabelo é outra forma de resistência para mostrar que é belo, forte, símbolo de ancestralidade. Antes de mim vieram muitos que sofreram e batalharam. Minha vestimenta e meu cabelo estão aí para lembrar as pessoas que negro também construiu o Brasil. E tenho usado bastante as redes sociais para compartilhar conteúdos que julgo importantes.
Onde você se enxerga no futuro?
Elen – Me imagino regendo a orquestra do Orquestrando Arte. Porque vamos crescer, seremos referência no Estado, no Brasil e quem sabe no mundo. Quero viajar muito com o nosso grupo, ou, pelo menos levando o trabalho do grupo para longe, porque é um trabalho que realmente eu acredito e me faz muito feliz. Faria tudo de novo, de mudar projetos pessoais para estar ali.
Quem é a Elen musicista? E o que é a arte para você?
Elen – É a Elen livre. Para mim a arte é liberdade, é eu poder sentir, me expressar. Hoje participo do coletivo Negressência, que é o coletivo de arte negra, e do coletivo Amor, Movimento e Dança, grupo de mulheres, onde todas compartilham, sentimentos, dificuldades em ser mulher nos tempos de hoje. Eu encontro na arte, em geral, um espaço onde eu posso ser tudo. O que eu imaginar… um pássaro, um personagem, eu posso ser qualquer coisa. É um momento só meu, onde eu posso estar no meio de todo mundo e me sentir plena. Não existe ninguém nem nada: é eu e a arte. Eu e o sublime. É difícil explicar.
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Parabéns Liciane, matéria linda. Nos faz refletir enquanto mulher, enquanto branca. Me emocionei com o seguinte trecho da entrevista: “o movimento feminista em geral traz que no início a mulher lutava pelo direito de trabalhar. Mas as mulheres negras não tinham direito a essa escolha. Elas trabalhavam desde sempre. Elas só queriam amamentar seus filhos, mas elas eram retiradas pra alimentar os filhos das suas senhoras”. Precisamos neste momento atual, reflexão, inspiração, mas com mais “leveza”, uma linda contribuição social.
O que dizer depois deste maravilhoso depoimento desta mestra que nos encanta e embalou os sonhos de tantos jovens, inclusive a minha jovem filha. Não tem como não amar em cada gesto e em cada palavra. Obrigada Elen.