Desde pequena, Débora sofria “de intensidade”. Definida pela família como uma menina muito inquieta e perguntadeira, a santa-mariense Débora Noal sempre teve no seu âmago a busca pelo humano do mundo. Formou-se em Psicologia e não demorou a colocar a mochila nas costas e percorrer o Brasil e o mundo envolto a desastres, epidemias e conflitos armados. Esse é, talvez, seu maior empreendimento, como ela mesma gosta de dizer: conectar-se com a dor do outro e fazer dela uma razão para o seu trabalho.
O resultado de muitas missões junto à organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) rendeu à psicóloga um livro onde ela relata, em detalhes minuciosos baseados em diários de viagens, a experiência junto a situações de desespero, calamidade e tristeza, onde viu a morte de perto e usou suas forças, palavras e gestos para ajudar a reerguer gente que não conhecia, mas que hoje faz parte de quem se tornou.
Débora lança, no sábado, em Santa Maria, O Humano do Mundo, o resultado de todas essas experiências que a fizeram resgatar a humanidade e se sentir à vontade dentro da própria pele.
O encontro vai ser às 14h, na Athena Livraria do centro (Floriano Peixoto, 1.112). Abaixo, confira a a entrevista com Débora.
O primeiro capítulo do seu livro ilustra uma pequena de 4 anos aprendendo a reconhecer a ‘primeira fronteira’ do mundo, que é a porta da própria casa. O que representa pra você hoje observar essa compreensão que teve lá em 1985?
Débora Noal – É interessante, porque eu ainda me emociono lendo essa passagem, que é quando conto sobre o momento em que me dei conta (quando me deparo com um pedinte que pede comida), que sociedade era essa que eu vivia, onde não ter laços de afeto, não ser cuidado e não ser protegido, representa essa sensação de vazio, de não estar pleno. É interessante, porque eu tinha quatro anos, mas ainda hoje, aos 37, ainda sinto a mesma coisa. Acho que a maior pobreza é quando você não sente que está completo, que não tem laços de afeto e cuidado, não tem pessoas que de alguma forma olham pra você com carinho, com desejo de proteção. Quando leio essa passagem – e que foi repetida pela minha família por vários anos -, olhando para isso mais de três décadas depois, ainda tenho a sensação de que a pobreza é isso: quando, de alguma forma, você está vazio de afeto, vazio dessa sensação de ter laços de cuidado, de ter uma rede de relações, uma rede de proteção. E não deixo de me surpreender ainda. Como é possível, uma criança tão pequena, acompanhar as perspectivas de cuidado, carinho, afeto e atenção? Felizmente é possível, sim, ir acompanhando isso desde os primeiros anos de vida.
No livro, você conta que teve o desejo de entrar no MSF com o relato de um amigo. Antes disso – já que diz também que sempre teve uma infância inquieta e “sofria de intensidade”, isso esteve no seu imaginário de alguma forma?
Débora – Eu sempre tive um desejo muito grande de produzir cuidado em diferentes partes do Brasil e do mundo. Antes de me formar na universidade, e de colocar as mochilas nas costas e sair pelo Brasil, lembro de procurar sites, principalmente sobre a Cruz Vermelha internacional, tentando ver qual era a possibilidade de entrar para ajudar. É interessante que, mesmo antes de me formar, a minha preocupação não era necessariamente se eu ia ter um emprego, mas se eu teria um trabalho que de fato fizesse jus a tudo aquilo que eu aprendi, ou seja: como eu podia usar aquilo tudo que me propus a aprender em seis anos da universidade? Eu queria saber como podia usar aquilo em prol do mundo que eu vivia. Quando procurei as organizações internacionais, nunca me passou pela cabeça que a Médicos Sem Fronteiras existisse. Quando esse amigo falou sobre a organização, meu olho brilhou. Foi um encontro. Um encontro do desejo com uma necessidade. Foi uma sensação muito boa de que, finalmente, me encontraram, e que eu me encontrei nessa missão.
Você lembra de uma situação em especial que tenha te deixado com muito medo durante essa jornada, ou que tenha sido muito difícil? Qual foi esse momento e o que passou pela sua cabeça?
Houve algumas situações em que senti muito medo. Em várias passagens do livro, fica bem claro o tensionamento e o medo evidente. Viver em situação extrema não é uma estrutura muito fácil. Costumo dizer que a grande diferença entre um psicólogo humanitário que trabalha na primeira linha de desastres de grandes proporções, de conflitos armados ou guerra, como eu trabalho, e um profissional que trabalha com urgência e emergência no Brasil, é que quando se trabalha no Brasil, em uma situação estável – seja no pronto socorro, ou no Samu – , a urgência que recebemos vem do outro. O desastre é do outro. Quando trabalhamos em uma situação extrema de ajuda humanitária, a urgência e o desastre do outro é também o nosso. Porque a bomba que está caindo pra aquela pessoa que estou atendendo também está caindo pra mim. A rajada de metralhadora que está acontecendo naquele instante e que afeta a vida dele também está me afetando. O terremoto do Haiti, por exemplo, nas primeiras 24 horas, quando cheguei para trabalhar, enquanto o chão tremia para aquelas pessoas (que tinham perdido boa parte das suas famílias e de todos os seus bens, incluindo todo o referencial geográfico de vida e sociopolítico), aquele chão que estava tremendo pra eles também tremia pra mim. A diferença é que a minha família não estava naquele local. Meu prédio e minha casa não estavam, mas a minha vida sim.
Mas quando se trata de medo, uma passagem que me lembro de forma muito viva está no livro, narrado como diário. No dia 26 de agosto de 2009, em Niangara, na República Democrática do Congo, narro com riqueza de detalhes das 22h até 1h da manhã, o que sinto no meu corpo em relação ao medo de um ataque. Principalmente porque foi um dia em que recebemos muitas pessoas deslocadas por um ataque na comunidade, muitos mortos no entorno, a alguns quilômetros de onde estava nossa base, e algumas pessoas disseram com detalhes durante a consulta que quem causou o massacre já sabia da nossa existência, do nosso endereço e que estavam planejando um ataque para aquela madrugada. Aquela noite talvez tenha sido impossível de dormir, porque a qualquer barulho do lado externo, eu já estava preparada pra correr. Dormi vestida, com documentos no bolso, pronta para fugir e sabendo que se aquelas pessoas entrassem na nossa base, provavelmente eu sofreria o mesmo tipo de violência das mulheres que eu atendia. Ou seja: sofreria um estupro coletivo e provavelmente morreria de hemorragia como muitas mulheres que habitam aqueles locais.
Como é o sentimento de voltar pra casa depois de viver realidades nas quais sequer imaginamos no conforto da barreira do nosso lar?
A sensação de voltar pra casa depois de vivenciar realidades tão extremas é dúbia. Ao mesmo tempo é uma sensação de alívio, de conforto extremo, saber que eu estou chegando num território onde vou conseguir dormir uma noite inteira sem medo que uma bomba caia na minha cabeça, ou que uma rajada de metralhadora me acerte, de que um grupo armado invada minha casa. É uma sensação estranha, porque é extremo alivio e ao mesmo tempo muito remorso. De estar voltando pra casa sabendo que tem muita gente do outro lado do oceano com medo, e que boa parte dessas pessoas não vão sobreviver aos próximos anos. É uma sensação horrível, porque essas notícias que escutamos nos noticiários, de tantos mil refugiados, na medida que você sabe o nome das pessoas e a história delas, e que divide a dor com elas, aquela história também é sua. Aquela situação de refúgio também é sua. Voltar pra casa sabendo que outras pessoas precisam de cuidado e de ajuda estão sozinhos e que provavelmente não vão sobreviver é uma sensação muito ruim. Dá vontade de voltar, de dividir, vontade de sair gritando pro mundo inteiro falando: você sabia que a Marie, você sabia que o Sulemani, eles estão do outro lado precisando de ajuda? Porque essas pessoas têm nome. A partir do momento em que elas têm nome, identidade e história, elas fazem parte da sua vida.
“Talvez esse seja meu empreendimento: me conectar com a dor do outro, mas principalmente fazer da dor do outro uma parte da minha razão de trabalhar”. Essa frase que você falou no Tedx me marcou muito. Queria que falasse sobre o paralelo de quem era a Débora em 2008, quando embarcou para as missões, e como você se enxerga agora, depois dessas experiências.
É uma sensação estranha. Costumo dizer, depois de ter voltado de todas essas missões e de mais de dez anos de trabalho humanitário internacional, que eu tenho a sensação de ter vivido mais de 100 anos. É como viver muitas vidas em uma só. Porque um dia você acorda, está no meio do Sudão do Sul, no meio do bombardeio onde muita gente está batendo na sua porta, pedindo ajuda, refúgio e proteção, no outro dia você tá no Haiti, o chão tremendo, as pessoas têm outro nome, outro sobrenome, outro cheiro e outra forma de pedir ajuda. No outro dia está no Quirguistão trabalhando no conflito étnico entre uzbeques e quirguizes, as pessoas têm outra cor, outro cheiro, outra forma de falar. A sensação de ter vivido muitas vidas é também uma sensação boa de pensar: que bom que eu consegui, de fato, estudar, ter um diploma e servir de passaporte. Porque eu costumo dizer que o meu passaporte não é aquele que a Polícia Federal me entrega. O passaporte para eu conseguir acessar a vida dessas pessoas e dividir suas histórias é o meu diploma. Eu sou de fato, uma psicóloga muito agradecida pela oportunidade de ter um diploma e poder entrar na vida dessas pessoas e dividir a dor, de alguma forma aliviar, ou ajudar a ressignificar essas histórias pra construir novos objetivos de vida. Hoje, me enxergo como uma pessoa plena, bem mais plena do que 2008. Uma sensação de conforto interno, de estar à vontade dentro da própria pele. Sou uma pessoa agradecida e ao mesmo tempo muito feliz com essa trajetória de vida e com essa possibilidade de ter escolhas.
Hoje você mora em Brasília. Como está o seu envolvimento com os MSF e seus trabalhos atualmente?
Ainda trabalho com os Médicos Sem Fronteiras. Entrei em 2008 e ainda hoje faço trabalhos. Em 2014 foi a última missão internacional. Mas depois disso trabalhei especialmente no atendimento clínico dos expatriados, que são pessoas como eu que saem do país. Faço preparação psicológica de quem sai e de quem vai retornar para o Brasil. Além de fazer esses trabalhos esporádicos, para o MSF, a partir de 2014, concluí o mestrado e o doutorado na UNB. Essa foi a razão de viver junto com a minha família em Brasília. Hoje faço algumas missões para organismos internacionais, mas boa parte delas são contextos menos violentos e agressivos dos que já trabalhei. Faço consultoria pra organismos como o Ministério da Saúde, Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento, algumas missões para o Banco Internacional de Desenvolvimento Humano. Muitos trabalhos são voltados para situações extremas de desastre, refúgios ou situações de deslocamento forçado.
Como é a sua relação com Santa Maria hoje? E o que representa pra você voltar à sua cidade com essa bagagem?
Tenho uma relação de carinho muito grande por Santa Maria, sou muito feliz em ter nascido e ter sido criada em uma cidade que valoriza os laços de afeto e as relações que se estabelecem. Minhas grandes amigas de vida e com quem ainda divido diariamente minhas histórias, trajetórias e dores nasceram ou foram criadas em Santa Maria. Tenho uma alegria muito grande em voltar e dividir histórias com essas pessoas. A última vez que voltei foi para trabalhar durante o incêndio da boate Kiss, para montar a estratégia de saúde mental para a cidade junto às equipes. Foi uma sensação estranha voltar num momento como aquele, um momento de sofrimento extremo, mas ao mesmo tempo foi uma sensação muito boa, porque eu nunca tinha visto nem no Brasil nem exterior (e são quase 20 missões ao longo desses 10 anos de trabalho humanitário), um número tão grande de pessoas dispostas e disponíveis a ajudar. E muitas dessas pessoas já eram tecnicamente qualificadas, coisa que não é muito comum nem no Brasil nem no exterior, no trabalho humanitário em urgências e emergências. Foi uma sensação boa de saber que não é a toa que eu vim desse lugar. Ao mesmo tempo também foi dúbio, porque foi muito triste voltar naquela situação.
E voltar pra lançar o livro em Santa Maria é uma sensação inexplicável. O primeiro lançamento era pra ter sido na cidade, mas devido a uma série de outras demandas, foi difícil. Lancei primeiro em Brasília e depois em Manaus. Santa Maria será a terceira cidade. Essa é minha origem, minha gente de base. São essas pessoas que me deram a base pra construir essa rede de afetos com o mundo. É muito bom voltar pra casa e dividir com gente da gente, poder contar histórias e dividi-las com quem sabe de onde eu vim. Depois de tantos anos longe de casa e tantos anos rodando pelo mundo, às vezes da uma sensação estranha de não ter praticamente ninguém que conhece a sua história. Ninguém sabe de que família você é quando você está no Congo, no Sudão. Ao mesmo tempo é muito legal voltar pra casa e saber de que família eu sou, de onde eu vim que história eu tenho, e que tem tanta gente pra poder trocar. Estou muito feliz em voltar pra casa. É uma sensação de grande realização poder lançar um livro no lugar onde eu nasci.
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